Agressões na região da fronteira do Brasil com o Paraguai
No dia 22 de novembro de 2023, o jornalista canadense Renaud Philippe e a cineasta e antropóloga Ana Carolina Mira Porto foram violentamente agredidos, ameaçados e roubados enquanto apuravam uma sequência de ataques contra uma retomada realizada por indígenas Kaiowá e Guarani em Iguatemi (MS), na fronteira com o Paraguai. Até o presente momento, segundo lideranças, três indígenas seguem desaparecidos e pelo menos dez foram feridos, entre eles uma gestante.
Carolina e Renaud trabalham há dois anos em um fotodocumentário sobre a luta Kaiowá e Guarani pela demarcação de suas terras, registrando a realidade de acampamentos, territórios e retomadas. Na última semana, eles cobriam a assembleia indígena Aty Guasu, em Caarapó, quando receberam a denúncia dos ataques em Iguatemi. Os jornalistas seguiram ao local acompanhados de um engenheiro florestal que estava no evento, testemunha das agressões.
Ainda na rodovia MS-386, que dá acesso à área indígena, foram abordados por um grupo de agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), ligado à Polícia Militar do estado do Mato Grosso do Sul. Identificaram-se como jornalistas, e disseram ter recebido relatos de conflitos em Iguatemi. Os agentes do DOF afirmaram a eles, com ironia, que “nada estava ocorrendo ali”.
Receosos, retornaram ao perímetro urbano de Iguatemi (MS), onde havia sinal de internet, e enviaram mensagens a órgãos públicos sobre a estranheza da situação. Em busca de um destacamento da Força Nacional que deveria estar no local, menos de uma hora depois da abordagem e na mesma altura da rodovia, os documentaristas encontraram a estrada bloqueada por dezenas de caminhonetes. Desceram do veículo, e foram cercados por homens encapuzados e armados.
Tentaram se identificar como jornalistas, mas foram imediatamente hostilizados. Ambos foram jogados ao chão. Renaud foi brutalmente espancado e teve parte de seu cabelo arrancado. Carolina foi ameaçada com uma faca e arrastada pelos homens, que disseram que marcariam seu rosto e cortariam seu cabelo. Durante a agressão, uma viatura da Polícia Militar (PM) passou pelo local, mas ignorou os apelos desesperados por ajuda ao casal.
Além da violência física e psicológica, foram roubados documentos, celulares, cadernos com anotações e também equipamentos fotográficos e audiovisuais, inclusive cartões de memória com parte de seu trabalho.
Cabe ressaltar que, em nenhum momento, os jornalistas adentraram em propriedade privada. A violência toda transcorreu numa via pública. A situação, grave em si mesma, evidencia a violência a que os povos indígenas vêm sendo submetidos no Mato Grosso do Sul e reforça os recorrentes relatos feitos por eles a respeito da conduta da PM.
Os jornalistas buscavam apurar um conflito no território Pyelito Kue/Mbaraka’y, em processo de demarcação. Um grupo de famílias indígenas havia realizado a retomada de uma parte da área no dia 18 de novembro, onde incide a Fazenda Maringá. Desde então, não haviam feito mais contato com as lideranças da aldeia antiga. As poucas informações que chegavam era de que a retomada havia sido alvo de um ataque de jagunços, e que havia indígenas feridos e mantidos em cárcere privado.
Contudo, foi somente após a agressão aos jornalistas que a Força Nacional chegou ao local. O mesmo grupo que espancou os jornalistas havia promovido um cerco contra as famílias acampadas, que por uma semana não conseguiram acessar a aldeia, ou fontes de água e alimentos. Os indígenas, muitos deles feridos, se viram forçados a retornar, recuando da retomada. A comunidade afirma que ainda há pelo menos três pessoas desaparecidas.
O conflito no território Pyelito Kue/Mbaraka’y é emblemático para os Kaiowá e Guarani. Em 2012, no contexto de uma absurda reintegração de posse por ocuparem míseros 2 hectares de terra, os indígenas lançaram uma carta pública afirmando estarem dispostos a morrer na luta por seu território ancestral, o que foi interpretado equivocadamente como o anúncio de um suicídio coletivo. O episódio gerou grande comoção e disparou o uso da alcunha “Guarani-Kaiowá” nas redes sociais.
Em 2013, o Grupo de Trabalho (GT) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável pela demarcação da área, publicou o relatório circunstanciado de identificação da Terra Indígena (TI), que passou a ser denominada Iguatemipegua I, com 42 mil hectares. Desde então, a demarcação do território estagnou e a comunidade seguiu enfrentando violências e violações de direitos contínuas. Assolada pela fome, a comunidade, mais uma vez desesperada, decidiu realizar a retomada em que se deram as últimas agressões.
É urgente que se tomem as medidas necessárias para encontrar todas as pessoas desaparecidas e que sejam responsabilizados os agressores e seus mandantes.
É fundamental também que seja investigada a violência e a negligência das forças policiais do Mato Grosso do Sul contra indígenas – que agora atingem também apoiadores e jornalistas. Em 2022, operações policiais contra retomadas Kaiowá e Guarani, em muitos casos praticadas sem mandado judicial, resultaram em dezenas de feridos e na morte do Guarani Kaiowá Vitor Fernandes, assassinado em Amambai (MS).
A impunidade e a naturalização da violência devem ser enfrentadas com determinação, transparência e firmeza por parte de todos os poderes públicos. A apuração dos crimes deve chegar àqueles que incentivam, financiam, promovem e defendem a violência contra os povos indígenas.
A superação da violência passa, de forma inegociável, pela urgente demarcação e homologação dos territórios Guarani e Kaiowá. Exigimos que o governo federal, através dos órgãos públicos competentes, redobre todos os esforços para avançar na regularização dos territórios indígenas, conforme o previsto na Constituição, sem atalhos nem arranjos.
As entidades que assinam esta nota manifestam sua solidariedade aos profissionais que foram covardemente agredidos e reafirmam o compromisso com a defesa dos direitos dos povos indígenas.